A encruzilhada da música experimental: o Improfest e seus formatos híbridos

25.05.2021 - Por Pérola Mathias

O Improfest, devido ao seu caráter híbrido de realização e busca por explorar formatos, tem se configurado mais do que apenas como um festival de música de improviso e se tornou um ponto flutuante de encontro entre artistas e pesquisadores. Ou, como definiu Marco Scarassatti, quando ele e Paulo Hartmann decidiram criar o Improfest, lá em 2007, tinham ideia de que a música experimental era “um encruzilhada que recebia pessoas de diferentes vertentes”.

Além dos frequentes encontros presenciais que proporcionava antes da pandemia, o Improfest tem um grupo ativo no FB e já fazia lives mesmo antes delas serem a nossa única opção de expressão e encontro ao longo desse período de isolamento. E, desde o ano passado, podemos assistir apresentações de músicos brasileiros e do mundo todo, com nomes destacadíssimos como Ken Butler, Elliot Sharp, Micah Gaugh, Lucio Agra, Livio Tratenberg, Dino Vicente; bem como de artistas de uma geração mais nova e que circulam nos principais espaços de capitais como São Paulo, Belo Horizonte, Salvador, Recife, como Thelmo Christovam, Nanati Francischini, Flavia Goa, Filipe Giraknob, dentre muitos outros. Para quem não tem acompanhado, basta dar uma olhada no site oficial ou no canal do YouTube para ver que não é exagero.

Ainda em 2017, marco de 10 anos do festival, o Improfest foi realizado no RedBull Station e contou com a presença de um dos pioneiros do turntablism Otomo Yoshihide. Em uma apresentação dele junto aos fundadores do festival, Marco Scarassatti e Paulo Hartman, mais o baterista Panda Gianfratti, realizaram uma sessão de improviso que depois foi lançada em disco, o Psychogeography, an Improvisational Derive (NotTwo Records). Já em 2019, em sessão na Casa das Rosas, reuniu Livio Tratenberg e o poeta João Bandeira, propondo uma a encruzilhada entre o improviso musical e a prática do spoken word.

Entre novembro e dezembro de 2020, o Improfest foi o convidado do festival Sonora Paço, que acontece desde 2012. E em março deste ano, 2021, começaram as stream lives dos trabalhos que entraram na curadoria da edição proposta ao edital do PROAC / Lei Aldir Blanc.

Foram mais de 40 artistas participando, em 26 dias, começando com o trabalho que reuniu os cineastas Ewerton Belico e Luiz Pretti, o poeta Ricardo Aleixo e o músico e inventor de sons Marco Scarassatti, que fizeram do próprio encontro uma improvisação em homenagem a Exú. Já Paulo Hartmann se juntou ao músico e pesquisador Dudu Tsuda e ambos, com duas câmeras cada, com imagens que vão ficando nítidas apenas ao longo da apresentação, se movimentavam em torno de seus instrumentos, a guitarra preparada e elementos de percussivos, respectivamente.

Já o músico Felipe José, formado pela UFMG e ex-integrante da Itiberê Orquestra Família, bem como o músico carioca Filipe Giraknob, além de terem apresentado obras em vídeo para a edição, fizeram uma outra apresentação live na parceria do Improfest com o russo NoumenART, festival de arte experimental e etno-avant-gard. A live do festival tem duração de 7 horas no YouTube, iniciando-se com a pianista Simone Weißenfels e se encerra com Anna Mikhailova acompanhada do pianista Feodor Amirov e do baixista Roman Vikhorev.

Assim, com as edições virtuais e seus materiais armazenados no canal do festival, temos um arquivo enorme de pesquisa internacional de música de improviso e arte sonora contemporâneos para mergulhar, de preferência com um fone de ouvido. Conversei com Marco Scarassatti e Paulo Hartmann sobre o histórico do festival e os formatos que ele foi adquirindo.

Poro Aberto: O Improfest já passou por diversos formatos desde que foi criado, em 2007, proporcionando, além das apresentações, diálogo com a academia, discussão de filmes etc., inclusive já teve até uma edição no Second Life. E, agora, por causa do contexto que vivemos, a edição foi toda virtual. Como foi organizar essa edição?

Marco: O Improfest tem se caracterizado, na minha opinião, por dois aspectos: um deles é ser mais que um festival, ser uma rede de improvisadores, que, é lógico, se organiza em torno de ciclos de programação e isso é o que o Paulo mais tem empreitado. Outra característica é a experimentação de formatos, da maratona de improvisação ao Second Life, nunca se fixou numa ideia única de programação, nesse sentido, experimentar programar remotamente, seja ao vivo, ou disparando vídeos pré-gravados, é mais uma das experimentações de formato.

Paulo: Organizar essa última edição — PROAC Lei Aldir Blanc — foi um movimento natural, pois já vínhamos, desde bem antes da pandemia, realizando concertos online, desde lives, como em 2019 para o lançamento do CD Psychogeography — an Improvisation Derive com Otomo Yoshihide no MIS em São Paulo — Bar Isshee em Tóquio, até concertos pré-gravados. Então, a partir de novembro de 2020, assumimos esse fazer mantendo uma programação mensal com artistas nacionais e internacionais.

A multiplicidade de formatos se deu por conta de tantas dificuldades que encontramos, o que, sem dúvida, foi um grande catalizador para pensar em alternativas realizáveis e que acabaram corroborando para este desenho múltiplo. Prosseguimos com a programação mensal e este mês inauguramos uma edição especial com o festival russo NoumenART com uma curadoria compartilhada entre Brasil e Rússia, trazendo em 16 artistas nos dias 8 (Brasil) e 8–9 (Rússia).

PA: É um feito notável que um evento de música improvisada tenha lugar por tanto tempo, com uma comunidade ativa de trocas nas redes e tudo mais. Como tem sido manter o Improfest ativo por todos esses anos e qual a importância de se criar e se instituir esse espaço de debate e criação?

Marco: Esse é o maior mérito do Paulo, incansável. Contra todas as adversidades ele tem se mantido atento às mudanças, sem medo de experimentar formas de manter essa rede ativa.

Paulo: Tenho trabalhado com festivais há um bom tempo, então tive a oportunidade de experimentar diversos formatos, que certamente são aplicados no Improfest. Por volta de 2002 trouxe para o Brasil o Memefest — Festival Internacional de Comunicação Radical, da Eslovênia. Naquela época — pré redes sociais e vídeos online — a grande força motora era a comunidade que se criava em seus diversos países e a interação entre elas, através do fomento ao pensamento crítico.

Anos depois participei da criação o Mobilefest. Especialmente nesse festival, voltado a tecnologias móveis, eu já vinha, sempre que possível, juntando com música e arte sonora; tive a oportunidade de realizar um concerto de Gilberto Mendes, Julien Ottavi e Cristiano Rosa (panetone). Então, quando encontrei com o Marco Scarassatti em 2007, juntamos esforços com o objetivo de realizar um festival de improvisação livre e arte sonora.

Possibilitar o espaço de debate e criação sobre qualquer assunto é fundamental, especialmente sobre a difusão da improvisação livre e arte sonora, que no início tinha pouco espaço. E sendo o Marco Scarassatti alguém atuante no campo educacional, só amplifica as potencialidades, catalisando a propagação no ambiente acadêmico, o que se concretizou nesse ano com uma parceria oficial entre o Improfest e UFMG/Fae.

PA: Como foi a ideia de criar o Improfest? Como ele surgiu?

Marco: O Improfest surgiu como Primeiro encontro de música Improvisada, em 2007. Na época, eu, o Denis Koisch, o Marcel Rocha e o Juli Manzi tínhamos um grupo de improvisação e poesia, chamado OlhoCaligari. Resolvemos fazer um encontro porque na época eu estava antenado que a música improvisada era uma encruzilhada que recebia pessoas de diferentes vertentes, desde o free jazz, a improvisação na música contemporânea, o noise, o experimentalismo. Eu pensava num jeito de juntar tudo isso. Nessa época, conheci o Paulo Hartmann que tocou no primeiro encontro e começamos a pensar em como aproveitar dessa experiência para criar um festival periódico. O Paulo criou o nome Improfest, tentamos agregar todos que faziam parte desse contexto complexo, mas sobramos nós dois… Logo depois acabei me afastando por causa da Universidade e o Paulo, desde então, desde 2010, tem feito um trabalho incrível, obstinado. Eu quando posso contribuo, seja na programação, ou mesmo tendo ideia, mas o Improfest hoje, só existe por causa do Paulo.

Paulo: Foi um dia certamente especial. Eu havia voltado de uma apresentação no E-Poetry 2007 com o projeto (demo)lição com Lúcio Agra, durante o qual, juntamente com Juli Manzi, criamos a Orchestra Descarrego.

Tínhamos marcado de fazer uma jam do Descarrego na minha casa. Nessa ocasião conheci o Marco Scarassatti, e decidimos a partir do Primeiro Encontro de Música Improvisada, juntar esforços no criando o Improfest.

PA: Gostaria de fazer uma pergunta mais geral, que pode ser respondida, talvez, de forma mais intuitiva: como você enxerga a improvisação hoje no Brasil (se é que é possível falar nesses termos gerais, mas evitando também falar em “cena” ou “tradição”)?

Marco: Para quem trabalha, como eu, com improvisação desde os anos 1990, acho que hoje a música improvisada tem atraído não só artistas como também produtores e setores da imprensa e crítica musical independente, cada vez maior. Acho que isso em algum momento vai possibilitar que haja uma economia em torno dessa forma de se fazer música. Porque, em geral, o dinheiro não circula para os artistas. Quando muito, há festivais que pagam cachês diferenciados entre atrações brasileira e estrangeiras, o que é péssimo, porque eu vejo hoje o Brasil e a América do Sul em geral como o centro das coisas mais interessantes do ponto de vista da experimentação e improvisação livre.

A improvisação no Brasil é rica e complexa e tem potencial para questionar essa certa “canonização” oriunda da ideia do experimentalismo, ou da música improvisada europeia sobre o que pode ou não fazer. É importante trazer à tona os regionalismos, os modos de fazer, as identidades, o ritmo, os lugares e os procedimentos idiossincráticos, ou mesmo os flertes com a música popular e tradicional. Isso é o que há de mais interessante pra mim. A questão ainda é que, em geral, o artista não detém os meios de produção, trabalha isoladamente e com pouca percepção da sua importância política, social e artística mesmo. Acho fundamental discutirmos mais a ideia de organização independente de produtores, curadores, festivais e tal, para efetivarmos uma economia em torno do que fazemos. Isso não é uma adesão ao capital, é uma precaução em relação a ele.

Paulo: Sem dúvida nos anos 90 era bem mais difícil. Daquela época, lembro das primeiras vezes que comecei a preparar a guitarra e o estranhamento de alguns músicos com quem tocava. Considerando esse tipo de reação e sendo otimista, dá até para dizer que hoje a música improvisada está consagrada no Brasil, ainda que soe um exagero, considerando todo o potencial ainda represado.

A improvisação livre tem muito a ver com a capacidade de escuta do outro e permitir-se surpreender com fórmulas não conhecidas nem zonas timbrísticas de conforto e, considerando o zeitgeist atual do Brasil, acho que estamos todos de parabéns! Em tempos cinzentos, o pensamento crítico, a escuta e sair do lugar comum, definitivamente não estão no campo do consagrado.

https://poroaberto.medium.com/a-encruzilhada-da-m%C3%BAsica-experimental-o-improfest-e-seus-formatos-h%C3%ADbridos-37586778ca27

Pérola Mathias é socióloga e falsa baiana. Pesquisa e escreve sobre música, fotografa música, respira música e vê música em todos os cantos. Criou o PoroAberto em 2015 para publicar críticas, resenhas e entrevistas sem pressão acadêmica ou de tempo.

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